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Brasil: Com novo governo, só falta combinar com os chineses

Análise de Marco Fernandes: Com mandato de Lula que começa em 2023, entenda os desafios e potenciais das relações econômicas Brasil-China

Marco Fernandes*

A eleição de Lula para seu terceiro mandato deve reconfigurar as relações entre Brasília e Pequim. O Brasil passa por uma grave crise econômica, política, social e ambiental. Combater a pobreza, retomar o crescimento econômico com redistribuição de renda, reindustrializar o país e reverter os abusos ambientais são tarefas urgentes, que demandarão do novo governo um esforço inédito de articulação política e financeira, nacional e internacional.

A parceria econômica entre Brasil e China, que avançou bastante nas últimas duas décadas, pode ser uma das chaves para reverter a crise. Mas alguns desafios precisarão ser encarados com diplomacia e planejamento estratégico

Apesar das inúmeras ofensas públicas do governo Bolsonaro à China, sobretudo durante o auge da pandemia, e do inevitável distanciamento das relações diplomáticas entre os países, o comércio bilateral entre Brasil e China não parou de bater recordes. Em 2021, atingiu a cifra de US$135,4 bilhões (R$ 683,98 bilhões), com um superávit comercial brasileiro recorde de US$ 40,1 bilhões (R$ 202,7 bilhões), que só foi superado por dois países, Austrália e Coreia do Sul.

É uma marca expressiva, pois a maioria dos países possui déficit com os chineses, que obtiveram um superávit global de U$458,93 bilhões (R$ 2,3 trilhões) no ano passado. A China é a maior parceira comercial brasileira desde 2009, e contabilizou quase o dobro do volume comercial que o Brasil obteve com seu segundo maior parceiro em 2021, os EUA (US$ 70,5 bilhões/R$ 356,1 bilhões), com o qual registramos um déficit de US$ 8.3 bilhões (R$ 41,9 bilhões).  

Uma relação comercial lucrativa, mas desequilibrada

No entanto, a pauta de exportação brasileira é vulnerável a longo prazo: pouco diversificada e baseada em produtos de baixo valor agregado. Os quatro principais produtos (minério de ferro, soja, petróleo bruto e proteína animal) somaram 87,4% do total das exportações para a China em 2021. Enquanto a pauta de importação de produtos chineses para o Brasil é altamente diversificada, com predomínio de produtos manufaturados, com alto índice tecnológico.

Dois exemplos: o principal item de importação (equipamentos de telecomunicações) foi responsável por apenas 5,9% das importações, enquanto o segundo (diodos, transistores e dispositivos semelhantes) representou 5,4% do total. 

O setor brasileiro de commodities é importante para a economia, representou quase 68,3% das exportações no primeiro semestre de 2022 e contribui há anos para o aumento das reservas internacionais. Por outro lado, tem alto índice de concentração de riqueza, paga poucos impostos, gera relativamente poucos empregos e de baixa qualificação, está sujeito a mudanças cíclicas de preços, e, em muitos casos, causa danos ambientais e à saúde humana, temas que precisam ser mais bem controlados pelo Estado.

Nesse sentido, foi importante a inciativa anunciada pela COFCO – maior compradora de alimentos do Brasil para a China – de monitorar e proibir a compra de soja plantada em áreas de desmatamento ilegal a partir de 2023. Mas ela também precisará do Estado brasileiro – que se notabilizou nos últimos anos pelo incentivo ao desmatamento e à invasão de reservas indígenas – para garantir a eficácia da iniciativa.

A China necessita dos recursos naturais brasileiros para seu desenvolvimento e o Brasil precisa do mercado chinês para suas commodities. Mas a médio e longo prazos, o Brasil precisará buscar maior equilíbrio na sua pauta comercial se quiser voltar a ser uma economia sólida. Lembremos que em 2000, o principal produto de exportação brasileiro eram os aviões a jato da Embraer, enquanto em 2022, o que mais exportamos é minério de ferro e soja. Esse é apenas um dos vários sintomas da nossa desindustrialização crônica.

Investir é preciso, mas diversificar também

Já os investimentos chineses no Brasil têm um perfil semelhante às exportações: robusto, mas pouco diversificado. Em 2021, o Brasil foi o país que mais recebeu investimentos chineses no mundo, com US$ 5,9 bilhões (R$ 29,8 bilhões), correspondendo a 13,6% do total global. Entre 2005 e 2021, o Brasil foi nada menos que o quarto maior receptor global de investimentos chineses (4,8% do total), somente atrás de EUA (14,3%), Austrália (7,8%) e Reino Unido (7,4%).

É um aporte de recursos fundamental para a economia brasileira, mas há desafios a serem enfrentados. De 2007 e 2021, 76,4% dos investimentos se concentraram no setor de energia (eletricidade e extração de petróleo e gás), enquanto somente 5,5% foram para a indústria manufatureira e 4,5% para obras de infraestrutura, entre nossas maiores carências.

O setor elétrico brasileiro foi o maior destino de investimentos chineses (45,5% do total), mas parte disso correspondeu à compra de empresas estatais brasileiras por estatais chinesas. Em 2017, a State Grid adquiriu o controle acionário da CPFL, estatal do estado de São Paulo, e em 2021, a CPFL comprou o controle da CEEE-Transmissão, estatal do estado do Rio Grande do Sul.

Para o Brasil, não foram bons negócios e demonstraram a irresponsabilidade de governos estaduais neoliberais do PSDB, que privatizaram ativos públicos estratégicos. A China – que jamais venderia uma estatal de energia para estrangeiros – cuidou de seus interesses e aproveitou uma oportunidade de negócio oferecida no mercado. Não se tratou de nenhum pacote de privatizações imposto pelo FMI. Mas será que Pequim estaria disposta a aceitar outros modelos de investimentos – inclusive no setor energético – que trouxessem mais benefícios para ambos os países? Talvez os exemplos argentinos recentes nos deem pistas para responder a essa pergunta.  

O exemplo dos hermanos do sul

Desde 2021, Buenos Aires e Pequim fecharam uma série de acordos de investimento estratégicos. Em fevereiro desse ano, a Argentina aderiu à Nova Rota da Seda, com projeção de US$ 23 bilhões (R$ 116,2 bilhões) em investimento chineses. Antes disso, foram anunciados a reforma do sistema ferroviário argentino, no valor de US$ 4,69 bilhões (R$ 23,7 bilhões), financiada e executada por companhias chinesas, e, investimentos vultuosos no setor elétrico: 1) a expansão do Parque Cauchari, maior usina de energia solar da América Latina, originalmente uma parceria sino-argentina; 2) a construção da hidrelétrica “Kirchner-Cepernic” na Patagônia (mais de R$ 20,2 bilhões); 3) a construção da usina nuclear “Atucha III” (R$ 41,9 bilhões), cujo financiamento terá oito anos de carência, e, o mais importante, prevê a transferência da tecnologia nuclear chinesa Hualong – dominada em 2021 – para o Estado argentino, que controlará a usina.

Com sua estatura política e econômica, além do enorme respeito que os chineses têm por Lula, o Brasil tem condições de propor parcerias tão (ou até mais) estratégicas, com benefícios mútuos. Por que não propor à China acordos bilionários de trocas de commodities (petróleo e gás) por infraestrutura e tecnologia, como já propuseram países como o Irã? Ou então a formação de mais joint ventures sino-brasileiras – que receberam apenas 6% dos investimentos chineses (2005-2020), enquanto as fusões e aquisições receberam 70% – que prevejam transferência de tecnologias para o Brasil? Aliás, as joint ventures com empresas dos EUA e Europa, muitas envolvendo transferência de tecnologia, não foram um dos segredos do sucesso do desenvolvimento chinês?

O Brasil vai precisar de um esforço gigantesco de reindustrialização da sua economia em diversos níveis, como investimento em pesquisa e desenvolvimento, formação de mão-de-obra especializada, financiamento e transferência de tecnologia. Nenhum outro país, como a China, reúne as condições financeiras, industriais e tecnológicas para cooperar com o Brasil nessa missão. Há inúmeros setores promissores, como veículos elétricos, tecnologias da informação, 5G, energias renováveis, setor aeroespacial, biomedicina, semicondutores etc.

Não podemos deixar a nossa relação com os chineses ser ditada somente pela dinâmica do mercado. É preciso trazer a política e o planejamento. Mas cabe ao Brasil propor um diálogo estratégico de alto nível com a China, que reafirmou no relatório do 20° Congresso do PCCh que irá “aumentar o investimento de recursos na cooperação e desenvolvimento global, se empenhar em diminuir a disparidade Norte-Sul, bem como apoiar e ajudar com determinação outros países em desenvolvimento a se desenvolverem de forma acelerada”. Precisamos combinar com chineses.

* Marco Fernandes é pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e co-editor do Notícias da China (Dongsheng)

Texto originalmente publicado no Brasil de Fato

 

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