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O incêndio em Xinjiang e a política zero-covid

Revista Fórum (Brasil)

Por Iara Vidal, de Pequim

Redes sociais foram inundadas por postagens que relacionam a tragédia na capital da Região Autônoma Uigur aos protocolos de controle da epidemia. Afinal, o que é fato e o que é rumor sobre o caso?

Por volta das 19h49 da quinta-feira (24), um incêndio ocorreu em um prédio residencial na comunidade de Jixiangyuan, distrito de Tianshan, cidade de Urumqi, capital da Região Autônoma Uigur de Xinjiang, no noroeste da China. A tragédia resultou em 10 mortes e nove pessoas feridas. Houve grande reação nas mídias sociais chinesas por todo o país e também no exterior.

Horas depois do ocorrido, na seção ‘Moments’ do aplicativo de mensagens WeChat, o mais usado na China, um artigo ilustrado com fotos atribuiu o incêndio à prevenção excessiva da epidemia da Covid-19.

A postagem foi feita na conta oficial Dahao – cujo autor é anônimo e leva o nome de um famoso poeta da Dinastia Tang (618 a 907 dC). Não há indícios de que quem escreveu o post tenha estado no local do incêndio. Ainda assim, ele informou que os protocolos para contenção da epidemia fez com que a porta de acesso ao edifício estivesse bloqueada, o que impediu que as vítimas escapassem do incêndio.

Depois que a postagem viralizou, na noite de sexta-feira (25), o chefe do Destacamento de Resgate de Incêndio de Urumqi,  Li Wensheng, concedeu uma coletiva de imprensa. Ele relatou que às 19h49 da quinta-feira (24), o centro de comando dos bombeiros recebeu um alarme. Foram mobilizadas sete estações de resgate e uma brigada de resgate de máquinas pesadas. Um total de 23 caminhões e 109 comandantes e combatentes participaram da operação. Um total de 514 moradores foram evacuados e 21 pessoas presas foram resgatadas do incêndio, que causou 10 mortes e 9 feridos.

Um repórter do Jimu News – uma plataforma de serviços de notícias e informações da Hubei Daily Media Group – visitou o local do incêndio, entrevistou testemunhas, equipes de resgate, funcionários da comunidade e respondeu a algumas perguntas importantes sobre o incêndio para publicar um texto intitulado “Quatro perguntas sobre o incêndio 11.24 na cidade de Urumqi”, veiculado no sábado (26).

1. Como e quando o incêndio começou? 

Por volta das 19h da quinta-feira (24) uma moradora do 15o andar do edifício tropeçou em um fio de eletricidade enquanto tomava banho. A filha dela descobriu que a tomada do quarto pegou fogo, as chamas se espalharam rapidamente em razão do piso e do teto serem de madeira inflamável. Ambas saíram em busca de socorro e encontraram um trabalhador comunitário, que constatou a gravidade do incêndio, acionou os bombeiros e as ajudou a escapar, junto com os moradores do 14o andar do prédio.

2. Quais os protocolos da política zero-covid na comunidade?

O secretário do Partido Comunista da China (PCCh) na comunidade, Azigul Kerim, informou que desde o dia 12 de novembro a comunidade de Jixiangyuan passou de área de alto risco para de baixo risco. Desde o dia 20 os moradores circulavam livremente.

3. A porta de incêndio estava amarrada ou soldada?

De acordo com a moradora Munire Ahemat, que estava no prédio durante a tragédia, a porta de incêndio do edifício estava aberta e nunca foi amarrada ou soldada. Após perceber a fumaça durante a tragédia, ela pediu ajuda ao grupo do WeChat da comunidade, recebeu orientação dos bombeiros, que chegaram para resgatá-la em 5 ou 6 minutos.

4. Há estacas e cercas montadas para prevenção e controle da Covid-19?

Segundo relato de um encanador que atua na comunidade de Jixiangyuan, Aili Sulitan, as cercas e estacas são montadas para facilitar o gerenciamento de entrada e saída de veículos e não tem relação com o controle da Covid-19. “Grades e cercas elevatórias são instaladas diariamente com o objetivo de desviar pessoas e veículos e gerenciar veículos na comunidade, e não são instaladas especialmente para prevenção e controle de epidemias”, disse.

Já o vice-chefe do Destacamento de Resgate de Incêndio da Cidade de Urumqi, Xu Baoyong, informou que após a entrada do caminhão de bombeiros, o veículo teve que virar à direita para chegar ao prédio onde ocorreu o incidente.

Tragédia sem relação com a política zero-Covid

Em outro texto sobre a tragédia, intitulado “Verdades e rumores em meio ao incêndio de Urumqi’, veiculado pelo canal do WeChat Sisyphus Review, dedicado a atualidades e macroeconomia, e que também viralizou pelo aplicativo de mensagens chinês, as razões do episódio não têm relação com a política zero-covid.

“Este incidente é uma tragédia, o projeto do edifício é defeituoso, a saída de incêndio é estreita e o raio de viragem do caminhão de bombeiros não é suficiente. Estes são todos os fatos. Mas isso não tem nada a ver com a prevenção de epidemias”, escreveu.

A partir dessa tragédia, um tsunami de postagens com críticas à política zero-covid inundou as redes sociais, inclusive as brasileiras. Há relatos dramáticos de que a potência asiática vivencia um caos, com uma onda de protestos país afora e que a população está farta dos protocolos de contenção à pandemia. E há também quem adote outra posição.

Maioria apoia controle da pandemia, aponta pesquisa CGTN

Não há dados que confirmem essa análise sobre a disposição ou não do povo chinês de seguir a política zero-covid. Há uma pesquisa global feita de forma online e organizada pela CGTN, rede de notícias estatal chinesa, que revelou que mais de 85% das pessoas ouvidas acreditam em medidas de contenção fortes para evitar que a Covid-19 infecte mais pessoas.

Os dados desse levantamento online foram divulgados na última quarta-feira (23), um dia antes do trágico incêndio na capital de Xinjiang, mas não informa o número total de participantes que responderam ao questionário.

Nesse contexto, mais de 60% dos entrevistados da pesquisa da CGTN disseram estar preocupados com os impactos na saúde de possíveis condições pós-Covid e a síndrome de Covid longa. Enquanto isso, apenas 29,44% dos entrevistados disseram que não estavam preocupados e 10,12% optaram por “difícil dizer”.

Epidemia de Covid-19 não acabou

Com ou sem apoio do povo para medidas de controle, o fato é que a pandemia da Covid-19 continua a ser uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional este ano, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), que tem instado os países a continuar a monitorar a situação e atualizar planos de resposta.

Neste domingo (27), o mundo testemunha a trágica marca de 6 milhões e 630 mil mortes, segundo a OMS, enquanto o vírus continua a sofrer mutações. No Brasil, foram registrados 35 milhões e 100 mil casos e 689 mil mortes. Nos EUA, houve mais de 97 milhões de casos da doença e mais de 1 milhão de mortes.

Protestos são comuns na China

Com relação à ocorrência de protestos populares na China, eles fazem parte do cotidiano do país. Os dados mais recentes são de mais de uma década e foram levantados pelo professor de sociologia na Universidade de Tsinghua, Sun Liping em 2010. Ele estimou que naquele ano houve até 180 mil eventos de massa, o que correspondia a 490 protestos todos os dias. Já o governo chinês informou que o número de “incidentes em massa” cresceu de 8.700 em 1993 para mais de 87 mil em 2005, o último ano em que divulgou uma contagem oficial.

No rastro do incêndio de Xinjiang, as redes sociais registraram protestos em Urumqi, Xangai, Nanjing, Guangzhou e Pequim. Na capital chinesa, há vídeos que mostram eventos no campi da Universidade de Tsinghua, uma das melhores da China. As postagens nas redes associam as manifestações à crescente irritação dos chineses com a política zero-covid.

Visão de brasileiros na China

Revista Fórum entrevistou dois brasileiros que moram na China sobre a avaliação deles sobre os recentes eventos. O bacharel em direito Rodrigo do Val Ferreira mora no país asiático desde 2005 e é árbitro da Comissão Internacional de Arbitragem Econômica e Comercial de Xangai (Shanghai International Arbitration Centre). Ele destaca que é importante ressaltar que o uso das redes sociais para a desestabilização de governos que antagonizam de certa forma a hegemonia ocidental não é nenhuma novidade.

Ferreira cita que até o jornal estadunidense New York Times, que não pode ser acusado de ser pró-China, publicou em 2020 uma extensa matéria sobre Falun Gong. Trata-se de um braço das operações da inteligência estadunidense no processo de desestabilização da China. “A reportagem trata da atuação da organização em mídias sociais. Os ataques são realizados por meio da máquina de desinformação chamada Epoch Times – em larga escala envolvida nos protestos em Hong Kong. Há muitas outras matérias a respeito”, comenta.

Ele descreve que é sobretudo no Facebook, no Instagram e, principalmente, no Twitter, que, sempre que há certo grau de tensão dentro da China, não tardam a aparecer centenas de postagens, em sua maioria fora de contexto, e por perfis falsos ou que não vivem na China, incendiando a realidade. “Fakenews, da mesma forma que conhecemos no Brasil e no restante do mundo. Uma praxe já mais que conhecida mas que, mesmo assim, captura os corações dos que preferem enxergar aquilo que satisfaz suas convicções mais que a realidade”, contextualiza.

Ferreira explica como as coisas funcionam na China, o que ele avalia que é pouco conhecido pelo Ocidente. “Se de um lado, há um governo Central e Local conscientes das dificuldades de se manter um controle severo da pandemia e que, aos poucos, vem buscando uma transição para uma normalização da gestão, de outro, na prática, quem aplica a política de controle são os próprios Comitês de Vizinhança, as esferas mais baixas de gestão dentro do centralismo democrático, muitas vezes aplicando medidas mais severas do que a lei permite, por simples receio de serem responsabilizados no caso de surgimento de um foco de Covid-19 que venha a causar problemas às esferas de gestão superiores”, descreve.

Esse impasse, afirma, entre esferas inferiores, com medo de serem responsabilizadas, e a lei mais permissiva e a busca do que é melhor para o cidadão, na prática, é muito difícil de ser aceita pelos moradores, sobretudo aqueles menos conscientes das dificuldades de gestão do problema.

“Não significa dizer que não há excessos, como no caso do incêndio, ou de restrições além do que a lei permite, mas é importante entender também que se não fosse esse controle restrito a China dificilmente teria sucedido manter uma das mais baixas taxas de letalidade na pandemia”, pondera.

Ferreira analisa que, de um lado, é preciso sim que se combata os excessos de aplicação de restrições àqueles que demonstradamente não colocam em risco o controle. Para ele, isso só será possível com uma massiva conscientização das esferas mais baixas de aplicação da lei. Por outro, diz, o problema denuncia uma questão ainda maior e geopolítica.

“Como, em questão de minutos, um pequeno quadro de instabilidade do outro lado do planeta é imediatamente representado como o caos, na esperança que o caos absorva ainda mais apoiadores, ansiosos para que ele seja destrutivo”, finaliza Ferreira.

Legitimidade do sistema político é conferida pelo povo

Já o advogado brasileiro Renato Peneluppi, que mora na China desde 2010, especializado em Administração Pública Chinesa e integra o Grupo de Trabalho “Diálogos Brasil-China”, do Instituto Lula, entre outras atividades, ressalta que a legitimidade do Partido Comunista da China (PCCh) é feita por meio da satisfação popular. “Portanto, é dever e necessidade do governo chinês refletir a vontade do povo em suas leis e políticas. E é dever dos cidadãos chineses seguir essas leis e políticas. Foi com ambos em sincronia e harmonia que ao longo dos anos a China alcançou sua estabilidade e prosperidade”, enfatiza.

O advogado relata que a Comissão Nacional de Saúde e o Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças enviaram conjuntamente grupos de trabalho para supervisionar a implementação das autoridades locais da nona versão do plano de prevenção e controle da epidemia e das 20 medidas otimizadas contra a Covid-19 para conter a epidemia e o seu ressurgimento o mais rápido possível.

Congresso Nacional do PCCh reforçou política zero-Covid

Durante o 20o Congresso Nacional do PCCh, realizado entre 16 e 22 de outubro deste ano, o presidente chinês e secretário-geral do partido, Xi Jinping, enfatizou que seguirá “colocando as pessoas e suas vidas acima de tudo”, em referência à política de Covid-Zero Dinâmico, recorda Peneluppi.

No começo deste mês, a China acenou com a possibilidade de aliviar as restrições da política de Covid Zero. “Mas em razão de uma nova onda do vírus, governos locais tiveram que agir rapidamente. Eventos como a CIIE [5a Exposição Internacional de Importação da China], garota propaganda da política de importação da China, sofreu muito com as restrições”, recorda o advogado.

Medidas para apoiar a economia

Além disso, Peneluppi elenca algumas da várias medidas adotadas pelo governo central para aliviar os efeitos da política zero-covid na economia. Ele cita que o Ministério de Assuntos Civis da China, juntamente com vários outros ministérios, prometeu nesta terça-feira (22) fortalecer a assistência temporária com subsídios financeiros para pessoas sem seguro e pessoas que enfrentam dificuldades básicas de vida, incluindo pessoas afetadas pela situação epidêmica.

O advogado também elenca que será oferecido um pagamento único de assistência temporária a trabalhadores sem seguro, como trabalhadores migrantes que não podem retornar ao trabalho devido à epidemia e trabalhadores que não têm fonte de renda há três meses consecutivos e vivem em dificuldades que não são cobertos por uma apólice de seguro-desemprego.

“Os licenciados que se encontrem temporariamente desempregados ou outras famílias ou indivíduos em dificuldades devido à epidemia também serão incluídos no âmbito da assistência temporária, refere o comunicado”, encerra.

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