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Bacurau contra o neofascismo tabajara

Global South News

Por Rafael Henrique Zerbetto

A invasão e depredação das sedes dos três poderes da República, em Brasília, no dia 8 de janeiro deste ano, chocou o mundo e ficará na memória nacional como um episódio traumático e lamentável.

Quem ainda se recusava a admitir que os autointitulados “patriotas” são bandidos neofascistas, continuará passando a mão na cabeça deles após este triste episódio, que por sua repercussão e gravidade não pode ser ignorado?

A depredação das sedes dos três poderes – executivo, legislativo e judiciário – representa uma destruição simbólica da democracia, resguardada justamente por estes poderes. Por mais que as instituições brasileiras tenham deficiências, algumas delas bem graves, elas são o resultado de um processo evolutivo do sistema de governança do país, e por isso a preservação de sua memória institucional é de grande valor para compreendermos esse processo e ir além, aperfeiçoando-as para que funcionem melhor.

Os acervos que preservam essa memória institucional sofreram graves danos: documentos e fotografias foram molhados e rasgados. Uma réplica fac-símile da Constituição de 1988 foi levada pelos criminosos – que aparentemente julgaram estar em posse do exemplar original. A mesa de trabalho de JK, mobiliário antigo do senado e diversas outras relíquias históricas dessas instituições sofreram danos.

Também fazem parte da memória dessas instituições obras de arte representativas de artistas brasileiros e presentes protocolares de autoridades estrangeiras. Cada objeto tem uma história e um valor simbólico único, sendo que alguns – como o ovo de avestruz do Sudão e diversas peças de porcelana doadas por diferentes países – são irrecuperáveis.

Diversos itens encontram-se desaparecidos, sendo que alguns deles parecem ter sido encomendados dos criminosos por agentes do mercado negro de obras de arte. Outros itens podem ter sido pegos como troféus pelos golpistas.

Os danos a computadores, equipamentos e mobiliário sem valor histórico demandam apenas conserto ou substituição, não danificam a memória, mas, ao contrário, podem se tornar parte dela caso sejam incorporados a algum acervo, passando a servir como prova documental de um atentado contra um povo.

E é aí que chegamos ao filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. A história se passa em um povoado fictício no sertão de Pernambuco, e um dos principais elementos da trama é o Museu Histórico de Bacurau, cujo acervo mantém viva a história de luta pela sobrevivência daquela comunidade e dá sentido à sua existência.

Reprodução

Quando o povoado é atacado, os moradores organizam a resistência a partir do museu e usam as armas de seu acervo para lutar contra os invasores, enriquecendo ainda mais as narrativas associadas àqueles objetos. Após o conflito, o chão do museu é lavado, mas as marcas de sangue nas paredes são preservadas, tornando-se elas mesmas novos símbolos da resistência popular.

Museus sempre foram espaços centrais na guerra de narrativas. No caso específico do Brasil, sempre foram espaços de contestação à história oficial, que tenta silenciar minorias e impor uma visão de mundo eurocêntrica e imperialista.

Por exemplo, enquanto a narrativa oficial mostra os povos europeus como heróis que desbravaram os mares para “descobrir” terras e colonizá-las, os museus apresentam provas de que bem antes disso já haviam povos vivendo ali, que foram massacrados pelos invasores.

Por serem espaços que mantém a história viva e permitem a descoberta de novas narrativas, os museus brasileiros sempre sofreram com o descaso do poder público, nas mãos da elite que criou e patrocina a narrativa oficial.

Do outro lado, o crescente interesse popular pelos acervos e a redescoberta de heróis intencionalmente esquecidos ou demonizados ajudou a elevar a temperatura da guerra de narrativas.

Uma característica peculiar do fascismo é o desprezo pela arte e pela intelectualidade, uma vez que são capazes de questionar o regime e, por esse motivo, precisam ser rechaçadas. Apenas a arte de propaganda do regime (como aqueles quadros e esculturas horríveis retratando o ex-presidente Bolsonaro, que até recentemente estavam expostos nos palácios de Brasília) deve ser promovida.

Isso explica a vandalização de acervos: obras de artistas geniais e inovadores como Brecheret, Di Cavalcanti e Burle Marx foram danificadas, enquanto uma bola de futebol autografada por Neymar – um símbolo da pobreza intelectual – provavelmente está intacta na casa de algum desses criminosos.

Outra característica do fascismo é a censura e intimidação da imprensa: segundo o Sindicato de Jornalistas Profissionais do Distrito Federal, pelo menos 14 profissionais foram hostilizados durante a invasão, havendo relatos de roubo de equipamentos, como celulares e máquinas fotográficas.

Em regimes fascistas, a imprensa normalmente é controlada pelo governo. E é aí que o neofascismo desse grupo se distingue do fascismo tradicional: ao invés de censurar a imprensa por meio da força, a extrema-direita se articulou pelas redes sociais formando uma rede que se retroalimenta, criando e compartilhando conteúdo de forma independente.

Dessa forma, a censura foi reinventada: dentro dos grupos neofascistas, todos são incentivados se informar exclusivamente pelos canais controlados pela rede, que contradiz a imprensa profissional e se vale de conspirações para justificar tal contradição.

Dentre outros traços do fascismo presentes na invasão, alguns são óbvios demais: discurso nacionalista, defesa do totalitarismo, desprezo pelos direitos humanos e a combinação explosiva de militarismo com conceitos religiosos propositalmente deturpados para servir a um projeto de poder.

Mas como trata-se de um neofascismo tabajara, acaba sendo burlesco: pessoas sedentárias vestem roupa camuflada e brincam de soldado; as mais empolgadas até pintam a cara. Entre os “Patriotas”, é possível ver bandeiras dos EUA e de Israel. Filmam e fotografam a si mesmos cometendo crimes e publicam nas redes sociais, depois tentam apagar as provas quando a polícia federal inicia as prisões. Ajoelham-se e oram enquanto outros ao redor depredam e saqueiam.

Uma semana antes da chegada dos neofascistas, a praça dos três poderes foi palco de uma festa igualmente simbólica: pela primeira vez a faixa presidencial passou pelas mãos do povo antes de ser colocada no presidente da República, criando um marco histórico: o povo – historicamente invisível aos olhos dos que usavam aquela faixa – apossou-se dela e subiu a rampa do planalto.

Ao danificar artefatos, os invasores apenas os ressignificaram. Agora eles apresentam novas narrativas, que ajudarão a consolidar o poder nas mãos do povo.

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